Somos todos filhos de Marte?
A vida na Terra teria começado… em Marte! É o que sugere, como se nĂ£o fosse nada demais, o bioquĂmico Steven Benner, pesquisador do Instituto Westheimer para CiĂªncia e Tecnologia, nos Estados Unidos.
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Imagem de Marte obtida pelo telescĂ³pio Hubble |
Falando ontem a uma plateia de cientistas em uma conferĂªncia em Florença, na ItĂ¡lia, Benner sugeriu que, por incrĂvel que pareça, os primeiros passos da vida, a partir de quĂmica simples, teriam sido dados muito mais facilmente no planeta vermelho, 4 bilhões de anos atrĂ¡s, do que na Terra.
O papo vai ficar meio cabeludo agora, mas, por favor, aguente firme que valerĂ¡ a pena.
Benner Ă© um dos defensores da hipĂ³tese conhecida como “mundo de RNA”. Trata-se da resposta mais aceita ao clĂ¡ssico dilema de Tostines no que diz respeito Ă origem da vida: o que vem primeiro, o material genĂ©tico, que guarda as receitas das proteĂnas que fazem tudo no interior dos organismos, ou as proteĂnas, que tocam o metabolismo adiante e sĂ£o a razĂ£o de ser do material genĂ©tico?
Hoje, a principal molĂ©cula guardadora do material genĂ©tico, como todos nĂ³s conhecemos, Ă© o DNA. Todas as criaturas vivas tĂªm seus genomas confortavelmente conservados em longas molĂ©culas dele.
Contudo, no passado, o RNA — que hoje serve principalmente para fazer o leva-e-trĂ¡s da informaĂ§Ă£o contida no DNA — pode ter sido o protagonista da festa. Por quĂª? Ocorre que os cientistas descobriram que, em certas circunstĂ¢ncias, ele pode agir ora como uma proteĂna, estimulando reações quĂmicas (ou seja, realizando metabolismo), ora para servir como guardador da informaĂ§Ă£o genĂ©tica (como, inclusive, faz para alguns vĂrus atĂ© hoje). Resolvendo os dois problemas ao mesmo tempo, ele seria o primeiro passo natural da vida, sem exigir a formaĂ§Ă£o de duas coisas diferentes (DNA e proteĂnas) simultaneamente.
DaĂ a ideia de que o livro da vida teria como seu capĂtulo inicial o “mundo de RNA”.
E MARTE?
Benner se especializou nos Ăºltimos anos no estudo de processos que podem partir de molĂ©culas simples e chegar Ă sĂntese de RNA. Seu trabalho Ă© tĂ£o reconhecido que o paleontĂ³logo americano Peter Ward chegou a chamĂ¡-lo de “mestre-cuca do RNA”.
Em suas pesquisas, Benner se deparou com dois paradoxos. O primeiro Ă© o de que, quando vocĂª junta molĂ©culas orgĂ¢nicas e as coloca para reagir, vocĂª nĂ£o cria vida — de RNA ou de qualquer outro tipo. “O que vocĂª tem Ă© algo como piche, Ă³leo ou asfalto”, diz.
Aparentemente, hĂ¡ alguns elementos quĂmicos que, colocados na mistura, impedem que esse processo de degradaĂ§Ă£o aconteça, entre eles boro e molibdĂªnio. “AnĂ¡lises de um meteorito marciano recentemente mostraram que havia boro em Marte. E agora acreditamos que a forma oxidada do molibdĂªnio tambĂ©m estava lĂ¡”, complementa.
O segundo paradoxo tem a ver com a Ă¡gua. Ela Ă© essencial Ă vida, mas faz um estrago danado quando RNA Ă© exposto a ela. Benner aponta que, embora houvesse Ă¡gua no passado de Marte, ela existia em quantidades bem menores.
Ou seja, transferindo o mundo de RNA da Terra para Marte, Benner parece estar resolvendo alguns dos maiores desafios quĂmicos para a origem da vida. Usando boratos para impedir a tendĂªncia de os compostos orgĂ¢nicos simples virarem piche, e molibdatos (versões oxidadas do molibdĂªnio) para rearranjar as molĂ©culas capturadas pelos boratos, Benner e seus colegas obtiveram ribose. “O R do RNA”, diz. “E estamos usandos ambientes desĂ©rticos para administrar a instabilidade intrĂnseca do RNA em Ă¡gua.”
Perguntei a ele se tudo isso nĂ£o poderia tambĂ©m ter acontecido na Terra primitiva, mas ele se mostrou muito otimista. “Muitos geĂ³logos nĂ£o nos ‘dĂ£o’ boratos em altas concentrações, molibdatos e desertos na Terra primitiva”, contou Benner. “Segundo eles, a Terra era jovem demais para ter concentrado os boratos, muito redutora para dar molibdĂªnio em alto estado de oxidaĂ§Ă£o e coberta por Ă¡gua.”
Em compensaĂ§Ă£o, Marte parece ter sido o ambiente ideal para essas reações. “Cerca de 3,5 bilhões de anos atrĂ¡s, toda a quĂmica que propomos poderia ter acontecido em Marte”, ele me disse. “Conforme o planeta foi ficando cada vez menos habitĂ¡vel, a vida que se originou em Marte escapou para a Terra, que permanece habitĂ¡vel atĂ© hoje.”
CARONA
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Sinais de possĂveis bactĂ©rias marcianas em meteorito |
Acontece direto. Aconteceu com o ALH 84001, meteorito que ficou famoso depois que um grupo de pesquisadores da Nasa, liderados por David McKay, disse ter encontrado sinais de bactĂ©rias marcianas antigas nele. (Hoje, a maior parte da comunidade aposta que os cientistas comeram barriga. Benner tambĂ©m nĂ£o compra a versĂ£o dos micrĂ³bios marcianos, embora ressalte que “ausĂªncia de evidĂªncia” nĂ£o Ă© “evidĂªncia de ausĂªncia”.)
Um dos pesquisadores que estudam a resistĂªncia de organismos vivos a viagens espaciais involuntĂ¡rias como essa Ă© Douglas Galante, do LaboratĂ³rio Nacional de Luz SĂncrotron, em Campinas. Embora ele acredite na viabilidade da panspermia (teoria que fala na transferĂªncia de organismos de um planeta a outro), o brasileiro Ă© cauteloso quanto Ă s afirmações mais arrojadas de Benner.
“É algo que ainda precisaremos provar”, diz. “A ideia ganharia muita força se detectarmos, com uma sonda como a Curiosity, uma grande quantidade de molĂ©culas precursoras da vida em Marte, que tenham sobrevivido Ă destruiĂ§Ă£o pela radiaĂ§Ă£o UV e pelos raios cĂ³smicos.”
“É algo que ainda precisaremos provar”, diz. “A ideia ganharia muita força se detectarmos, com uma sonda como a Curiosity, uma grande quantidade de molĂ©culas precursoras da vida em Marte, que tenham sobrevivido Ă destruiĂ§Ă£o pela radiaĂ§Ă£o UV e pelos raios cĂ³smicos.”
Por enquanto, portanto, a origem marciana da biosfera na Terra Ă© sĂ³ uma hipĂ³tese bacana, que ilustra muito bem como Ă© complicado compreender como veio a ser esse fenĂ´meno incrĂvel que chamamos de vida.
Curiosity procura sinais de quĂmica prebiĂ³tica em Marte. AtĂ© agora, nadica de nada. |